Economia social e consumo ético: Desafios e oportunidades numa sociedade em rede

Artigo do Dr. Beja Santos, Direcção Geral do Consumidor
O trunfo da multifuncionalidade
Desde os pioneiros de Rochdale que as cooperativas de consumidores são um “berçário” de inovações sociais. Definidas como empresas comerciais ao serviço exclusivo dos interesses das pessoas que aderiram a um “societariado” para promover a melhoria do poder aquisitivo e a solidariedade no consumo, as cooperativas erigiram a multifuncionalidade como a pedra-de-toque da inovação e do seu desempenho no desenvolvimento sustentável.
Essa multifuncionalidade expressa-se na sua capacidade de estabelecer plataformas entre colectividades e outros movimentos associativos, coordenar ou veicular nas suas superfícies campanhas centradas no serviço público (prevenção do endividamento excessivo dos indivíduos e famílias, segurança infantil, reciclagem e gestos verdes, comércio justo...).
Tal capacidade reticular pode permitir às cooperativas de consumidores intervenções em domínios pertinentes da contemporaneidade, caso da sensibilização para a segurança alimentar, a justiça rápida, cómoda e descentralizada ou o consumo ético. Acresce que a nova fase de Alargamento tem vindo a ser apresentada como uma excelente oportunidade para potenciar o diálogo entre a Administração, os cidadãos e as empresas sociais, numa perspectiva de valoração do serviço de interesse geral. Face a este desiderato, vale a pena centrar a nossa atenção no comércio justo e no consumo ético.
O paradigma do social e ambientalmente responsável
Na origem desta atitude, temos o consumo responsável em que as cooperativas têm colaborado activamente com os consumidores organizados, sindicatos e diferentes ONG’s ligadas à acção humanitária e à cooperação para o desenvolvimento. Chegou-se ao consumo social e ambientalmente responsável a partir de produtos ambientalmente menos lesivos e como reacção ao novo consumismo.
Uma palavra sobre este individualismo moderno. O sociólogo Robert Rochefort (“O Consumidor Empreendedor, Os novos modos de vida”, Instituto Piaget, 1999) refere que vivemos o desencanto da sociedade de consumo por três razões. A primeira é que deixámos de ter consciência da melhoria das condições de vida porque esta se tornou cada vez menos espectacular. A segunda tem a ver com o facto de querermos doravante tudo ao mesmo tempo. A terceira prende-se com a perda da noção do tempo e a impaciência daí resultante: não só queremos tudo de uma só vez como queremos tudo imediatamente.
Este consumismo gera um espírito de eficiência técnica no mercado, mas não gera responsabilidade social. Esta apresenta-se como alternativa ao puro consumismo. É aqui que nasce a responsabilidade, por um mercado mais justo.
Antes de comprar, queremos conhecer as empresas pelos seus aspectos sociais, económicos e ambientais, vasculhamos sites na Internet para conhecermos estratégias da expansão de negócios ou da conquista de mercados. E queremos saber cada vez mais acerca da sua política de pessoal, do seu sentido de responsabilidade ambiental ou que tipo de cidadania praticam as empresas na sua envolvente interna.
Insatisfeitos com a lógica predatória das empresas (sobretudo as de grande porte), os consumidores optam por produtos e serviços que se encaixem nesta dimensão da responsabilidade. Esta, a base do comércio justo: negociação de preços dignos aos produtores, dando-lhes condições de vida mais aceitáveis. O comércio justo procura criar os meios e as oportunidades para melhorar as condições de vida dos produtores, na tripla dimensão da equidade social, da preservação ambiental e da segurança económica.
Quem são os actores do comércio justo
Como o comércio justo é uma parceria comercial fundada no diálogo, transparência e respeito, a economia social tem vindo a atrair as organizações do comércio justo e estas vendem em lojas cooperativas, abrem os seus próprios estabelecimentos, formam coligações à escala local, regional, nacional e mundial, com base em procedimentos alternativos.
Originalmente, as empresas de comércio justo orientavam-se para a venda de produtos artesanais produzidos por pequenas cooperativas sediadas em África, Américas e Ásia. O novo impulso foi dado com o café e o chá, que introduziram, a partir dos finais dos anos 80, um verdadeiro saber fazer na cooperação. Nessa altura, criou-se a “International Federation for Alternative Trade”, hoje um grupo de retalhistas de países do Norte e de organizações de produtores do Sul, que conta actualmente com 160 membros em 50 países.
A “European Fair Trade Association” é um grupo de onze organizações presentes em nove países europeus e com uma rede de cooperação estratégica. O café do comércio justo pode ser encontrado nos supermercados, em lojas específicas e em espaços cooperativos. Não é alheio a este fenómeno a criação da Fundação Max Havelaar, constituída nos Países Baixos, responsável pela rotulagem e por normas do comércio justo que permitem separar as águas entre a cooperação para o desenvolvimento e o puro oportunismo comercial.
Os produtos que gozam do rótulo de comércio justo apresentam hoje um volume de vendas que se aproxima dos 300 milhões de euros. A Rede Europeia das Lojas do Mundo (Magasins du Monde) tem um papel importante na sensibilização local e na promoção do activismo colaborando com as lojas Oxfam, que também valorizam a consciencialização a favor de uma nova ética no consumo.
Este fenómeno tem vindo a estabelecer vínculos com o movimento constestatário da má globalização (onde aparecem o turismo socialmente responsável, inúmeras organizações que actuam no Terceiro Mundo, grupos de agricultura biológica, música alternativa, banca ética, entre tantos outros).
A própria Comissão Europeia, atenta ao ímpeto dos direitos sociais e ambientais na empresa, apresentou em 2001 um Livro Verde sobre a responsabilidade social das empresas. Este documento de trabalho prestou um valioso serviço à discussão pública sobre o que são critérios sociais e ambientais à luz das expectativas dos investidores e da vida empresarial: qualidade do trabalho, investimento socialmente responsável, preocupações com o rótulo social, eco-eficácia, combate ao esbanjamento de energia e recursos naturais, etc.
Abriu-se um enorme debate que, no caso das cooperativas de consumidores, consolidou a reflexão que permite estabelecer a ligação entre o consumo responsável e o desenvolvimento sustentável. Não basta a economia ser limpa, se ela não dispuser de cidadãos responsáveis nos planos social e ambiental; não há equidade se não se reduzir e reorientar o consumo global; a consagração da plena utilização dos bens e serviços é sinónimo de consumo responsável, em que o pleno rendimento da utilização dos bens se baseia na ecologia e na equidade; devem preferir-se investimentos que dignifiquem os trabalhadores.
Uma janela de oportunidade para as cooperativas
Nascia uma nova atitude da sociedade civil que se exprime por iniciativas como boicotes aos produtos das empresas que não respeitam os direitos sociais ou ambientais, o aparecimento de investimentos alternativos, uma banca ética disposta a financiamentos éticos... E vale a pena destacar que o comércio justo está em fase de implantação em Portugal (Beja Santos e Artur Tomé, “Consumactor, o consumidor contra a má globalização”, Temas e Debates, 2003). Diremos que há amplas franjas de cidadãos que estão motivados, mas a desorientação face às realidades do mercado é enorme. O consumidor individualista continua à procura do “bom, bonito e barato”, mas não são poucos os que se dizem prontos a pagar um produto mais caro, desde que ele introduza mais ética e solidariedade.
Uma das questões principais é o que e como escolher em alternativa ao produto social e ambientalmente reprovável. Não há respostas satisfatórias imediatas e hoje qualquer plano de acção em prol do desenvolvimento sustentável alerta para a realidade de que é preciso ir progressivamente integrando componentes, selando parcerias, colocando os investigadores a trabalhar com as empresas, as autarquias e mesmo a economia social.
As cooperativas possuem um património e uma pluralidade cultural que lhes permite um bom posicionamento para intervir em diferentes domínios do desenvolvimento sustentável. É o caso da certificação social, da comercialização de produtos do comércio justo, da promoção de conferências e debates para divulgar os investimentos éticos, ou a colaboração com os media locais, regionais e nacionais para divulgar as vantagens de um desenvolvimento sustentável baseado nos princípios do comércio justo e de um consumo ético.
Acresce dizer que as cooperativas, pela sua dimensão, podem funcionar como uma alavanca para a informação ao consumidor e estabelecer um interface que reuna os parceiros locais num estimulante debate sobre os modos de produção e consumo sustentáveis, um indicador incontornável da renovação cooperativa, orientada pelos princípios da solidariedade e sustentabilidade.