O consumo sustentável explicado a gente apressada (e a não iniciados)

Artigo do Dr. Beja Santos, Direcção Geral do Consumidor (outro texo do mesmo autor em Recursos - Consumo Responsável)
Não há uma opinião unânime quanto ao fenómeno que possa ser classificado como o mais importante e decisivo do séc. XX. Historiadores, economistas, analistas políticos, filósofos, entre outros, referem invariavelmente que o século pretérito se impôs como o século da mulher, o tempo que abriu as portas à democracia nos 5 continentes, a era de sangrentos conflitos mas também a do Estado Providência e da consagração dos Direitos Humanos. Acontece que qualquer que seja a perspectiva (no triunfo da igualdade de oportunidades, o século imperial norte-americano, o século da liberdade de voto, nada de essencial decorreu à margem do consumo de massas, algo de incipiente nos anos 20 e que se consolidou no fim da II Guerra Mundial. Fenómeno instável por natureza e que conduziu, a partir dos anos 80, à chamada modernização ecológica em sintonia com o denominado desenvolvimento sustentável. Apesar das crises energéticas, da globalização, da aceleração dos negócios em tempo real, das profundas assimetrias, etc. é graças ao desenvolvimento sustentável que andamos à procura de respostas para haver equidade na satisfação das nossas necessidades e aumentarmos a riqueza cuidando do ambiente. Neste contexto, e na sequência da Agenda 21 (documento aprovado na Cimeira da Terra, em 1992), nasceu a exigência de procurar promover “modos de produção e consumo sustentáveis” exactamente para demarcar esta atitude daquilo que são os modos de produção e consumo insustentáveis.
É este o pano de fundo que nos leva a perceber como o paradigma da modernização ecológica gerou o estado de espírito em aprofundar um consumo gradualmente mais sustentável, mais cidadão e mais responsável. Como se compreenderá, o seu discurso não está ainda normalizado, nele conflituam inúmeros interesses que podem dar pelo nome de eco-eficiência, eco-tecnologias, consumo amigo do ambiente, interligando-os com as dimensões sociais e económicas.
“La société de consommation face aux défis écologiques” é um dossier organizado por Edwin Zaccaï e Isabelle Haynes para a prestigiada Editora La documentation Française (Novembro de 2008). Trata-se de um documento muito útil para se entenderem as possíveis respostas a um consumo que pretende contrariar a degradação ambiental, conhecer o estado da arte sobre a implementação do consumo sustentável e passar em revista algumas das mais destacadas estratégias internacionais (no quadro da ONU, da OCDE e da União Europeia). É a síntese deste precioso e oportuno documento que vamos seguidamente dar ao leitor.
Primeiro, o consumo deslumbra mas também intimida, e mesmo os países chamados emergentes sentem-se confrontados com os impactes ambientais altamente preocupantes. Foi na transição do séc. XIX para o séc. XX que evoluiu o sentido de “consumir” (passou de objecto consumido para a conotação de satisfação ou prazer individual ou familiar). A sociedade de consumo passou a ser explicada como um conjunto de práticas identitárias para as quais os indivíduos estruturam a sua identidade social através de mecanismos de troca, incessantes e contínuos. O consumo tornou-se uma actividade central da existência das pessoas, desenvolveu signos materiais e imateriais muito potentes, a tal ponto que há quem questione se vivemos numa sociedade de consumo ou numa sociedade em e para o consumo, em permanência. O que é relevante é que o consumo, as suas necessidades e desejos, são uma prática quotidiana, inalienável, do berço ao túmulo.
A sociedade de consumo instalou-se na chamada região altamente industrializada do planeta e as consequências são bem conhecidas. Os habitantes dos países da OCDE, que representam 20% da população mundial, auferem 85% dos rendimentos mundiais, consomem 75% da energia total e mais de 80% dos outros recursos e estão na origem de 75% da poluição mundial. A mutação que se está a operar é que uma série de países em desenvolvimento (China, Índia, Paquistão. Tailândia, Brasil...) estão a bater à porta da sociedade de consumo, querem melhores condições de vida, estão cheios de aspirações. Mais de metade dos consumidores vivem hoje nos países emergentes, têm rendimentos anuais superiores a 7 mil dólares, isto é aproximam-se do limiar oficial de pobreza da Europa Ocidental.
Este crescimento económico tem elevados custos e lança inúmeros desafios à prosperidade dado que o ambiente está ameaçado: se a mudança climática, o empobrecimento da biodiversidade, a falta de água e as repercussões sanitárias da poluição triunfarem, o crescimento económico desmoronar-se-á com consequências imprevisíveis. Sabe-se agora que esses desafios não passam por respostas específicas a este ou aquele problema: impõe-se uma estratégia que enquadre a redução das emissões de CO2 num vasto contexto de modernização que se chama sustentabilidade.
Segundo, vivemos numa permanente tensão na procura de conciliar ecologia, sociedade e economia. Registam-se inúmeros esforços para modernizar a economia de mercado através da introdução de tecnologias ambientalmente mais respeitadoras que aumentem o rendimento dos recursos (fazer mais com menos). Nasceu assim a noção de modernização ecológica (tecnologias limpas, intensidade energética, eficiência logística e utilização eficiente do espaço), uma maior prevenção dos riscos, abrindo-se caminho a todas as potencialidades da inovação tecnológica.
Eliminar o desperdício passou a ser uma consigna, se bem que muitas empresas que batem com a mão no peito a falar em responsabilidade continuem a desperdiçar alegremente. Doa a quem doer, aquelas embalagens de alumínio que deitamos no lixo depois de beber o refrigerante põem em causa o elementar da sustentabilidade: extraiu-se a bauxite na Austrália, foi transportada de barco até à Escandinávia, onde se produziu o alumínio, daqui partiu para a Alemanha onde foi laminado e depois reenviado para a Grã-Bretanha onde se fizeram as latas cantadas pela publicidade. Impõe-se questionar se devemos elogiar a reciclagem ou combater radicalmente este monstruoso esbanjamento. É verdade que tem havido muito sucesso nas economias de energia mas a situação ambiental mundial mantém-se agravada e daí as críticas para a saída desse possível pesadelo que seria a catástrofe ambiental planetária: política de redução do crescimento, redução maciça do tempo de trabalho, consumir menos, viver com mais simplicidade, etc. São sugestões, mas como não há nenhum contrato mundial que induzisse coerência nos comportamentos de consumo e admitisse uma aproximação gradual daqueles que nada têm, as sugestões têm o mesmo destino que as utopias irrealizáveis. Toda a gente propõe mudanças, a questão é que ninguém quer diminuir o seu consumo, os seus direitos, os seus rendimentos.
Terceiro, estão a ser dados passos em direcção ao consumo sustentável, talvez desirmanados, mas alguns deles bastante seguros (como é o caso das alternativas energéticas). Estamos a ver esboçar-se um conjunto de respostas na alimentação, na energia, na nossa vida doméstica, no modo como nos transportamos, por exemplo.. Qualquer uma destas problemáticas põe em confronto questões complexas com respostas delicadas, nem sempre consensuais. Veja-se a alimentação, um universo onde cabem: modos alimentares mais seguros; modos de produção susceptíveis de preservar os solos e de diminuir o impacto da cadeia alimentar sobre o ambiente; a diversificação dos circuitos de abastecimento para se conseguir obter uma oferta alimentar mais equilibrada; a gestão de recursos alimentares de proximidade que levem à redução dos custos de transporte...e muito mais haveria a dizer. Esta complexidade encontramo-la na habitação, na economia de energia, nos produtos de higiene, conservação e limpeza, no modo como nos deslocamos, como fazemos turismo, como relacionamos o nosso local de trabalho com o espaço da residência. Em suma, temos ainda muito que caminhar para planos de desenvolvimento sustentável, exequíveis, acatados, participados.
Quarto, o consumo sustentável enquanto componente do desenvolvimento sustentável é uma questão política mas também empresarial. A inovação e a competitividade passam por estímulos a tudo quanto é sustentável e sanções e tudo quanto é insustentável. Daí falar-se da economia de funcionalidade como aquela que contempla serviços susceptíveis de minimizar custos e de instalar a responsabilidade do produtor ao consumidor. Esta sustentabilidade no consumo implica uma revolução na educação do consumidor, tornando-o parceiro qualificado, interveniente e crítico, pronto a instalar eficiência energética em casa, a protestar contra “desinformação verde” com que algumas empresas nos tentam enganar, prontos a fazer escolhas melhores para o ambiente e a aceitar a fiscalidade ambiental. Questão política, o futuro da ONU, o encorajamento ao consumo sustentável e a credibilidade numa União Europeia passam por orientações justas e viáveis que sejam capazes de progressivamente fundar a nova realidade da política dos consumidores em 5 domínios: mudar a maneira de consumir; modificar simultaneamente o hardware e o software dos modos de consumo; adoptar uma abordagem que tenha sempre em consideração o ciclo de vida para determinar os domínios que justifiquem uma intervenção política (regulação e liberdade de iniciativa, em concomitância); intervir preferencialmente na concepção, remediar e punir é sempre mais dispendioso e desencorajante; associar diferentes políticas para garantir a sua integração e transversalidade como uma prática cultural e não como um expediente, a essa prática cultural que definirá a nova riqueza das nações, o papel regulador do Estado, a criatividade e a responsabilidade das empresas e o desempenho dos cidadãos na sustentabilidade.
É aqui que nos encontramos, é daqui que vamos partir com mais confiança para o futuro.